08 Novembro 2022
Ele ainda é membro da Dicastério para a Doutrina da Fé, que é o responsável pelos processos por pedofilia. O presidente da Conferência Episcopal comenta: “Estamos em choque”. Antes dele, houve denúncias apenas sobre três cardeais, Groer, O’Brien e McCarrick, estes últimos dois punidos pelo Papa Francisco. Há 11 bispos franceses, em exercício ou aposentados, sob investigação penal ou canônica.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada em La Repubblica, 07-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um novo terremoto sacode a Igreja Católica francesa: o poderoso cardeal Jean-Pierre Ricard, ainda membro do Dicastério para a Doutrina da Fé – que é responsável, entre outras coisas, pelos processos canônicos por pedofilia –, duas vezes presidente da Conferência Episcopal francesa, reconheceu publicamente que abusou de uma menina de 14 anos quando era pároco, aos 43 anos de idade.
A notícia-choque foi comunicada pelo atual presidente da Conferência Episcopal, o arcebispo de Reims, Eric de Moulins-Beaufort, em meio a uma assembleia plenária, em Lourdes, já monopolizada pela crise dos abusos sexuais.
No fim de outubro, a imprensa francesa revelou que o Dom Michel Santier havia renunciado alegando razões de saúde em 2020 por abusos sexuais realizados nos anos 1990, sob a forma de confissões com strip-tease imposto ao penitente e denunciados ainda em 2019 às autoridades eclesiais francesas e vaticanas. Uma falta de transparência que levantou muitas críticas também entre os fiéis.
“Enquanto esclarecemos, na medida do possível, esse caso, a presidência e o conselho permanente trabalharam sobre outro casos de bispos postos perante a Justiça do nosso país ou a justiça canônica”, disse Dom De Moulins-Beuafort em uma declaração lida à imprensa. “Posso lhes dizer o que sabemos, mas primeiro tenho que lhes informar aquilo que recebemos inesperadamente ontem: a iniciativa que agora compartilho com vocês a pedido daquele que a fez é inédita. Vou ler um comunicado do cardeal Ricard: ‘Hoje, enquanto a Igreja na França decidiu escutar as pessoas vítimas e agir com verdade, decidi não calar mais a minha situação e pôr à disposição da Justiça, tanto em nível de sociedade quanto da Igreja. Essa iniciativa é difícil, mas o que vem em primeiro lugar é o sofrimento das vítimas e reconhecer os atos cometidos sem querer ocultar a minha responsabilidade. Há 35 anos, quando eu era pároco, comportei-me de modo reprovável com uma jovem menina de 14 anos. Meu comportamento necessariamente causou consequências graves e duradouras a essa pessoa. Expliquei-me a ela e lhe pedi perdão. Renovo aqui o meu pedido de perdão também à sua família. É por causa desses atos que decido tirar um tempo de retiro e de oração. Por fim, peço perdão às pessoas que feri e que vão viver esta notícia como uma verdadeira provação’”.
Depois de alguns instantes de silêncio, o arcebispo de Reims afirmou: “Essa admissão do cardeal Ricard, nós a acolhemos ontem, nós, bispos, como um choque. Vocês podem imaginar a estima que sentimos por ele, nós que o elegemos duas vezes como nosso presidente e fomos testemunhas de seu episcopado em Grenoble, Montepellier e Bordeaux. Imaginamos o estupor de seus diocesanos e de todos os católicos da França. Devo especificar que o fato de que ele fala é objeto de uma denúncia à Procuradoria, porque, como ele diz, a jovem menina era menor de idade no momento dos fatos, e também de uma denúncia ao Dicastério para a Doutrina da Fé”.
Não se sabe ainda o que a Santa Sé vai decidir fazer agora. A partir das palavras do cardeal francês, transparece que provavelmente será aberto um processo canônico, assim como, de modo compatível com os tempos de prescrição, um processo penal na França. Dado o grau da pessoa envolvida, porém, é diretamente o papa quem deve ser chamado em causa para uma eventual decisão de punição.
Os antecedentes – cada um sendo um caso à parte – são muito raros. O cardeal Hans Hermann Groer aposentou-se como arcebispo de Viena em 1995, acusado de múltiplos abusos sexuais de jovens seminaristas, sem que o papa de então, João Paulo II, o punisse. O cardeal Christoph Schönborn, sucessor de Groer em Viena, acusou o então cardeal secretário do Estado Angelo Sodano de encobrimento.
Com Bento XVI, o cardeal escocês Keith O’Brien, acusado de assédio por parte de seminaristas, não menores de idade, não participou, devido a isso, do conclave de 2013, e, em 2015, após uma investigação interna, Francisco tirou seus direitos e deveres ligados ao cardinalato.
O caso mais grave foi o do cardeal estadunidense Theodore McCarrick, acusado de vários abusos cometidos tanto contra adultos quanto contra menores de idade: após uma investigação, em 2019 Francisco o demitiu do estado clerical e o expulsou do Colégio Cardinalício.
O presidente dos bispos franceses comunicou que há 11 bispos franceses, em exercício ou eméritos, em investigação por abusos sexuais perante a Justiça francesa ou canônica.
A assembleia plenária vai durar até terça-feira. Dom De Moulins-Beuafort também admitiu que, no caso de Michel Santier, houve uma série de disfunções na França e em Roma, que devem ser corrigidas.
Nascido em Marselha em 1944 e ordenado sacerdote em 1968, Jean-Pierre Ricard tornou-se bispo em 1993, primeiro como auxiliar de Grenoble, depois como ordinário de Montepellier e Bordeaux. Criado cardeal por Bento XVI em 2001, esteve à frente, na época de Joseph Ratzinger, da tentativa de restabelecer as relações com o grupo ultratradicionalista dos lefebvrianos. Pelo menos agora, ele é um dos quatro cardeais franceses eleitores, isto é, que entrariam em um conclave, junto com os cardeais Dominique Mamberti, Jean-Marc Aveline e Philippe Barbarin, que se aposentou depois que, na sua Diocese de Lyon, eclodiu o primeiro caso de pedofilia do clero, o dos abusos em série cometidos contra um grupo de escoteiros pelo Pe. Bernard Preynat e nunca denunciados à Justiça pelos diversos bispos que se sucederam.
O cardeal Ricard é atualmente membro de três dicastérios romanos: o para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, o para a Promoção da Unidade dos Cristãos e o da Doutrina da Fé, no qual ele é responsável em uma de suas duas sessões pelos processos canônicos em matéria de abusos sexuais contra menores.
Em 2022, o cardeal Kevin Farrell o nomeou delegado pontifício para administrar os Foyers de Charité, depois que surgiram casos de abuso de consciência e acusações de abusos sexuais.
No voo de volta do Bahrein, no domingo passado, o Papa Francisco respondeu justamente a um jornalista francês sobre os abusos sexuais de menores, afirmando, entre outras coisas, que “é preciso fazer a revisão de julgamentos velhos e não bem feitos”.
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Cardeal francês Ricard admite: abusou de uma jovem de 14 anos quando era pároco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU